O que será das nossas meninas?

O que será das nossas meninas?

Quando tinha uns 16 anos e era uma estudante do 1º ano do Ensino Médio – isso lá por 19xx e abafa o caso – lembro de ler na Veja uma notícia miúda, mas que me marcou pra sempre. Junto do texto curto (a pauta merecia muito mais espaço), o que mais chamava atenção era a foto de uma criança com o rosto borrado segurando, com seus bracinhos magros, dois bebês prematuros. Eram seus filhos. Gêmeos. Crianças geradas por uma criança. Não me recordo se ela havia sido vítima de abuso sexual, só sei que a pauta abordava o número crescente de crianças e adolescentes que se tornavam mães precocemente, mutilando seus corpos e as perspectivas de futuro.

Aquela imagem me motivou a desenvolver uma pesquisa sobre gravidez na adolescência para a feira de ciências do colégio. Acionei minha madrinha,  Ângela, que na época trabalhava na Secretaria Estadual da Saúde e era da equipe que elaborava as estatísticas. Lembro que os dados já apontavam um percentual crescente de jovens que, por diferentes contextos e realidades, tornavam-se mães precocemente

Além de apresentar um panorama da gravidez na adolescência, eu e minhas colegas também pesquisamos sobre métodos contraceptivos e acrescentamos esse viés ao trabalho. Foi um baita serviço pra gurizada e lembro de termos levado nossa apresentação à feira “grandona”, realizada pela rede de ensino da qual a escola fazia parte.

O contato com essas informações me fez ter um medo gigante de uma gravidez indesejada, não planejada. E, talvez por isso (e também porque sempre fui muito determinada e convicta de que transar era coisa séria), tenha tido minha primeira relação sexual aos 18 anos, quando desejei e com quem quis.

Quantas de nós, mulheres, temos esse “privilégio”? Sim, termos nossos corpos respeitados é um privilégio e uma sorte. Porque abusadores estão em todas camadas e arranjos sociais. 

Esta semana, mais uma criança teve sua história denunciada pela mídia. Mais uma criança de 11 anos vítima de estupro, grávida, e que teve seu direito à interrupção da gestação resultante de abuso sexual – o que é garantido por lei desde 1940 neste País – negado. Mais do que isso, ela foi mantida pela Justiça de Santa Catarina em um abrigo por mais de um mês para evitar que fizesse um aborto legal.

Ao procurar um hospital para realizá-lo, teve seu direito negado porque já estava com 22 semanas de gestação (pelas normas médicas, o procedimento pode ser feito sem trâmites jurídicos quando a gestação estiver em até 20 semanas).

Por isso, o caso chegou à juíza Joana Ribeiro Zimmer (assine a petição pelo afastamento dessa criatura desumana clicando aqui) que, ao lado da colega promotora de Justiça Mirela Dutra Alberton, coagiu a menina a manter a gestação “mais um pouquinho”, para que entregasse a criança para adoção, porque assim estaria realizando o sonho de uma família (branca, privilegiada e que prefere adotar bebês às tantas crianças e adolescentes que lotam lares Brasil afora).

Se você tiver estômago, acesse aqui a reportagem do The Intercept Brasil, feita conjuntamente por Paula Guimarães, Bruna de Lara e Tatiana Dias a partir do acesso que tiveram aos vídeos da audiência, enviados de maneira anônima ao jornal.

Em suma, trata-se de um show de horrores com altos requintes de crueldade. Para você ter uma ideia, a juíza chega ao ponto de perguntar à menina se ela acha que o pai da criança concordaria em entregá-la a adoção.

Durante toda audiência, fica nítido que a menina não tem noção alguma do que está acontecendo. É uma criança exposta a questionamentos sobre os quais ela não tem maturidade para opinar. É doloroso de assistir e uma crueldade sem tamanho praticada por duas mulheres que agem como se estivessem jogando a criança na fogueira da Inquisição. Sim, se você ainda não se deu conta, o Brasil exibe indicadores que remontam a até 30 anos, conforme reportagem recente do jornal O Globo. Voltamos a patamares críticos de fome (insegurança alimentar), pobreza, evasão escolar, desmatamento, inflação.  

Acompanho os conteúdos da Joice Berth, mulher preta, arquiteta, curadora, escritora, assessora política e mãe. Ela postou em seu IG um relato que denuncia a estrutura social histórica que impera neste País e é conivente com essa barbárie, para que mais e mais meninas tenham seus corpos explorados pela gravidez compulsória, para que tenham filhos para manutenção do contingente explorado para acúmulo de capital da elite. Como Joice define, estamos sob a “mão invisível, onipresente e onisciente que organiza as dinâmicas sociais”.

Leia, siga e compartilhe as reflexões necessárias da Joice. Precisamos de vozes como a dela pra furar a bolha que cega tantas de nós. 

Por anos, acreditei que essa luta contra injustiças sociais como o racismo e o feminicídio não fosse minha.

Me equivoquei. Ela é de todes que, assim como eu (e acredito muito que você também) desejam contribuir para a reparação histórica que precisa ser feita, que sonham com uma sociedade igualitária e inclusiva, que têm empatia, humanidade e que clamam por um futuro menos nefasto.

Segundo estudo do Anuário de Segurança Pública de 2020 apurado pela Joice, o estupro é a maior ocorrência de violência contra crianças e adolescentes. São 56% dos registros nas Secretarias de Segurança Pública Estaduais.

O que será de nossas crianças?

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NOTA DA JORNALISTA (dados incluídos ao texto em 26 de julho de 2022)

Acompanhei o desenrolar dos fatos ao longo da semana e entendi que era preciso acrescentar algumas informações e também me manifestar sobre comentários e mensagens que recebi. 

Conforme notícias publicadas pela mídia, na quinta-feira, 23/6, o Ministério Público Federal disse que o Hospital Universitário de Florianópolis realizou o aborto na menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina. Ela havia sido impedida de acessar o procedimento porque a gestação já passava de 22 semanas. A menina caminhava para a 29ª semana de gestação. Na quarta, a Procuradoria expediu uma recomendação ao hospital para que o procedimento fosse garantido a todas as pacientes que procurassem o serviço de saúde nas hipóteses de aborto legal, independentemente da idade gestacional e peso fetal. 

Na mesma semana, a Polícia Civil iniciou análise do material genético de um adolescente de 13 anos para confirmar se o jovem seria autor do estupro contra a menina de 11 anos. 

Bom, eu não vou entrar neste assunto, simplesmente porque eu acredito que essas especulações desviam do que está, de fato, em jogo neste caso. 

E o que ficou escancarado é que nós, mulheres, ainda não compreendemos que precisamos ser, TODAS, feministas. Não importa qual seja o seu credo, importa que você entenda que a luta para termos autonomia sobre nossos corpos vem de muitos anos. Milhares de mulheres, décadas e séculos atrás, ousaram enfrentar o status quo, foram para as ruas, sofreram represálias e morreram para que nós, hoje, pudéssemos ter a liberdade que por tanto tempo nos foi cerceada. Eu prezo muito pelos direitos que conquistamos e desejo que assim sigamos. E só evoluiremos se andar juntas. 

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